sábado, 23 de junho de 2007

Mais sobre eles

Abelardo e Heloísa, em Père-La-Chaise
"Fujo para longe de ti, evitando-te como a um inimigo,
mas incessantemente te procuro em meu pensamento.
Trago tua imagem em minha memória e assim me traio e contradigo,
eu te odeio, eu te amo."
Carta de Abelardo a Heloísa

"É certo que quanto maior é a causa da dor,
maior se faz a necessidade de para ela encontrar consolo,
e este ninguém pode me dar, além de ti.
Tu és a causa de minha pena, e só tu podes me proporcionar conforto.
Só tu tens o poder de me entristecer, de me fazer feliz ou trazer consolo."
Carta de Heloísa a Abelardo

Retrato de um amor

Abelardo e Heloísa


É um túmulo de mármore branco, no cemitério Père-la-Chaise, em Paris. Sob a proteção de um docel rendilhado, também de mármore, eles se encontram em sua forma definitiva, modelados pela memória, pela noite, pelo desejo.

Deitados um ao lado do outro, em vestes mortuárias, sem se tocarem, rostos voltados para os céus, mãos cruzadas sobre o peito, sem desejo: assim um escultor os esculpiu, obediente à forma como a tradição religiosa imobilizou os mortos. Mas se a escolha fosse deles, a escultura seria outra: O Beijo, de Rodin, seus corpos nus abraçados. E as palavras gravadas seriam as de Drummond:

O Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matem) a cada instante de amor.

Assim é o túmulo de Abelardo e Heloísa: amaram de forma apaixonada e impossível, irremediavelmente separados um do outro pela vida, na esperança de que a morte os ajuntasse, eternamente.

O amor feliz não vira literatura ou arte. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, As Pontes de Madison, Love Story – o amor comovente é o amor ferido. Diz Octavio Paz que “as coisas e palavras sangram pela mesma ferida”. Mas o amor feliz não é ferida. Como poderiam, então, dele sangrar palavras? O amor feliz não é para ser cantado. É para ser gozado. O amor feliz não fala; ele faz. Se escrevo sobre Abelardo e Heloísa é porque sua história é uma ferida na minha própria carne. Heloísa tinha 17 anos. Abelardo, 38. Vinte e um anos os separavam. O amor ignora os abismos do tempo.

Abelardo (1079-1142) era apelidado de “pássaro errante”. Intelectual fulgurante, figura central das discussões filosóficas em Paris, motivo de invejas, ódios e paixões. Assim Heloísa o descreve, numa carta para ele mesmo: “Que reis, que filósofos tiveram renome igual ao teu? Que país, que cidade, que aldeia não se mostrava impaciente em te ver? Aparecias em público? Todos se precipitavam para te ver. Partias? Todos te procuravam seguir com seus olhos ávidos. Que esposa, virgem, não se terá abrasado por ti em tua ausência e incendiado em tua presença? Possuías, sobretudo, duas qualidades capazes de conquistar todas as mulheres: o encanto das palavras e a beleza da voz. Não creio que outro filósofo as tenha possuído em tão alto grau”.

Heloísa, jovem adolescente dotada de raras qualidades intelectuais, vivia em Paris, na casa de seu tio. Esse, desejoso de lhe dar a melhor educação, contratou Abelardo como seu tutor intelectual. Mas as lições de filosofia duraram pouco. Logo os dois estavam perdidamente apaixonados. E Abelardo, filósofo de rigor lógico incomparável, se transformou em poeta. Heloísa tomou conta do seu pensamento e do seu corpo e, a partir de então, segundo ele mesmo confessa, nele só se encontravam “versos de amor e nada dos segredos da filosofia”.

O tio, ao descobrir o que acontecia em sua casa, sentiu-se enganado e se enfureceu. Interrompeu as “lições” e proibiu que eles se vissem de novo. Inutilmente. A distância não apaga, ela acende o amor. E o próprio Abelardo comenta: “A separação dos corpos levou ao máximo a união dos nossos corações e, porque não era satisfeita, nossa paixão se inflamou cada vez mais”.


Mas Heloísa ficou grávida. Abelardo resolveu raptá-la e levá-la para um lugar distante. De noite, retira-a da casa do tio e a leva para a casa da irmã dele, em Palet, distante 400 quilômetros de Paris. É lá que nasce o filho do seu amor. Casam-se secretamente no dia 30 de julho daquele ano.

Mas, para o tio de Heloísa, o acontecido exigia vingança. Planeja, então, a pior de todas as vinganças possíveis. Contrata um bando de marginais que invadem a casa de Abelardo e o castram. Pensava ele que, assim, colocaria um fim àquele amor. Inutilmente. Continuaram a se amar pelo resto de suas vidas com o poder da memória e da saudade – até que a morte os unisse eternamente. Como no filme As Pontes de Madison. Só que, no filme, o instrumento de castração não foi o ódio de alguém, mas o amor piedoso por alguém.

Abelardo morreu aos 63 anos, em 1142. Heloísa, ao saber disso, exige para si a posse de “seu homem”. Na verdade, era isso que Abelardo havia-lhe pedido. “Quando eu morrer”, ele lhe escreveu, “peço-te que procures transportar o meu corpo para o cemitério da tua abadia...”. E Heloísa ordenou que, uma vez morte, seu corpo fosse enterrado no túmulo de seu marido. O que aconteceu 21 anos depois.

Conta-se que, ao ser levada para o túmulo, quando o caixão de Abelardo foi aberto, ele abriu os braços e a abraçou. Dizem outros, ao contrário, que foi Heloísa que abriu os seus, para abraçá-lo. É possível. Talvez o amor de Heloísa tenha sido mais puro e mais intenso. Abelardo conhecera o amor de muitas e o amor à filosofia. Heloísa, ao contrário, conheceu apenas o amor por Abelardo. Diz um de seus biógrafos: “Para Heloísa, não há senão dois acontecimentos em sua vida: o dia em que soube que era amada por Abelardo e o dia em que o perdeu. Tudo o mais desaparece a seus olhos numa noite profunda”. Ainda hoje, decorridos quase 900 anos, os namorados visitam aquele túmulo. Talvez para suplicar a Deus que eles estejam abraçados eternamente, como em O Beijo, de Rodin. Talvez para pedir que nos seja dada a felicidade de viver um amor como aquele, mas sem ter de viver a sua dor.

O amor feliz, sem literatura, sem fama, sem que ninguém conheça. Basta-nos a felicidade aliteraria do amor feinho, como a Adélia Prado o batizou carinhosamente. Estou certo de que era isso que Abelardo e Heloísa teriam desejado.

(Rubem Alves, em Retratos de Amor, 99-103)

quinta-feira, 7 de junho de 2007

"O amor vence. Sempre"

Diálogo entre Mitch e Morrie:

Procuro na livraria do campus os títulos constantes da lista passada por Morrie. Compro livros que nunca suspeitei que existissem, tais como Juventude: identidade e Crise, Eu e você, O ser dividido. Antes da faculdade, eu não sabia que o estudo das relações humanas podia ser considerado matéria acadêmica. Antes de conhecer Morrie, não acreditava que pudesse. Mas o amor dele pelos livros é autêntico e contagioso. Passamos a discutir assuntos sérios depois da aula, quando a sala está vazia. Ele me indaga sobre a minha vida, cita passagens de Erich Fromm, Martin Buber, Erik Erikson. Às vezes, concorda com eles, mas acrescentando a sua opinião sem negar a concordância. É nessas ocasiões que percebo que ele é mesmo um professor, não um tio. Uma tarde me queixo do choque entre o que a sociedade espera de mim e o que eu quero para mim.
- Que foi que eu lhe disse sobre a tensão dos opostos?- ele pergunta.
- Tensão dos opostos?
- A vida é uma série de paixões para frente e para trás. Queremos fazer uma coisa, mas somos forçados a fazer outra. Algumas coisas nos machucam, apesar de sabermos que não deviam. Aceitamos certas coisas como inquestionáveis, mesmo sabendo que não devemos aceitar nada como absoluto. Tensão de opostos, como o estiramento de uma tira de borracha. A maioria de nós vive mais ou menos no meio.
- Parece luta-livre – pondero.
- Luta-livre – ele repete, e ri – É. Pode-se definir a vida dessa forma.
- E que lado vence? – pergunto.
- Que lado vence?
Ele sorri para mim, os olhos enrugados, os dentes tortos.
- O amor vence. Sempre
.”